segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Retalhos de gente: uma reflexão sobre o jogo pessoal do eu/nós feminino nos textos de Lia Vieira


Retalhos de gente:

uma reflexão sobre o jogo pessoal do eu/nós feminino nos textos de Lia Vieira

Thiago Antônio dos Santos

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Vinculada ao grupo paulista Quilombhoje, Lia Vieira está presente em diversas edições dos Cadernos Negros, ao lado de Míriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Conceição Evaristo e tantas outras que encontram na literatura uma forma de traduzir em arte verbal seu existir negro num cotidiano de exclusão. Nas páginas seguintes, em que analisamos trechos dos textos dessa poeta e prosadora mineira, pretendemos, em primeiro lugar, uma reflexão sobre certos aspectos fundamentais presentes na escrita de autoria feminina e afro-descendente. Para a crítica norteamericana C. Durham,As escritoras desta antologia surgiram durante uma explosão verdadeira de expressão, aumentada pela conjuntura de certas circunstâncias sociais e políticas. Essas escritoras surgem como resultado dum aumento na consciência feminista, a coalizão da comunidade literária afro-brasileira, e o dar-se conta de que as vivências, objetivos e aspirações da mulher negra se diferenciam dos das outras mulheres e também dos homens negros, e por isso é necessário que tenham suas próprias vozes (DURHAM, 1995: 1).

Estamos falando de uma proposta de investigação dos modos de produção do signo ideológico feminino na literatura, que determinam sua presença na linguagem e nos discursos, e colocam em evidência a problemática da consciência da mulher negra, marcada por uma linguagem que se contrapõe à discriminação social e racial.

Primeiramente, selecionamos alguns aspectos estruturais do mundo retratado pela autora em questão, e que também podem ser vistos como característicos desse tipo de escrita, como, por exemplo, a manifestação de um discurso em tom reivindicatório e persuasivo, e a eficaz caracterização de personagens e espaços. A repercussão desses elementos, reunidos de forma peculiar nesse ramo da literatura

brasileira traduz uma preocupação presente na memória daquela que escreve: Um dia hei de ter tempo de tomar para mim todo o tempo que me apetecer e neste dia, todas as histórias, vivências e pressentidos de Vó Rosa e dos parentes vão incorporar-se à minha vida. Tal é o poder da herança-memória.

A avó de minha infância existe mais porque eu tive tempo de observá-la, porque ela passou a existir em mim. É dessa fusão de tempos perdidos que desejo fazer o meu tempo; essa colheita de tempos fugazes.

Possa eu viver ainda, porque há em mim tanto que não foi visto, conceda-me a estação das contemplações e mesmo se os tratores apagarem a terra ou as divisas do território, peço a sobrevivência remanescente da identidade de nós outros, pois será assim meu corpo, decomposto e renascido. (VIEIRA, Lia. “Rosa da Farinha.” In: Cadernos Negros volume 22.1999: 62)

Em face do exemplo citado, podemos destacar a importância da literatura elaborada por Lia Vieira. Ela contém questões específicas, realçadas com veemência, dentro dos temas tidos como característicos da literatura afro-brasileira. Ante a ficção veiculada nos seus textos, nota-se que a autora lida com o universo amplo da criação literária e, ao mesmo tempo, com a necessidade imediata de recuperar a memória dos valores e dos vínculos definitivos, vistos nos laços de parentesco, entre os africanos e seus descendentes.

No epicentro de uma de suas composições, a escritora introduz a figura de “Rosa da Farinha”. Interessada em narrar os fortes modelos de ancestralidade que lhe cabem hoje, Lia Vieira traça o perfil de uma linda senhora: maçãs salientes, grandes olhos escuros, intensamente argüidores, e que refletem uma fascinante gama de sentimentos: tristeza e dor, alegria e beleza, coragem e esperança. Vó Rosa é membro de uma importante família localizada na Fazenda Campos Novos, município de São Pedro D’Aldeia, estado do Rio de Janeiro. E é dentro dos limites de “Caveira” – uma estrada de ferro em que passam peões a trabalho –, que essa senhora recebe suas visitas, vindas de toda parte, e lhes conta uma centena de histórias e expõe seus ensinamentos. A narrativa está cheia de fragmentos e episódios que

demonstram a reputação de incorruptibilidade dessa famosa senhora de traços “aristocráticos”: Totalmente consumida pelo ardor político, sentia-se à vontade onde quer que estivesse. É como se sua casa, a de nº179 do Caminho da Caveira, fosse o local ideal para receber seus ilustres visitantes vindos de toda parte.

Vinham para contar-lhe suas mágoas, pedir-lhe conselhos, ouvir-lhe os ensinamentos; e não havia quem não partisse com ânimo mais forte e em paz consigo mesmo. Era muito simples o que ela ensinava. Dizia que somos maiores do que pensamos e que a resistência é o caminho para romper os grilhões. Mas o que mais impressionava não era a doutrina, e sim a mulher, sua benevolência, a grandeza de alma, a determinação. (VIEIRA, Lia. “Rosa da Farinha.” In: Cadernos Negros volume 22.1999: 56)

A meu ver, as idéias presentes no conto revelam que o teor ideológico da escrita de Lia Vieira, que adquire uma relação de valorização do negro em sua humanidade e cultura. Abordando o tema de maneira verdadeira à sua época, fornece alguns exemplos profundamente apreciados por estarem associados a uma posição ousada e corajosa, tantas vezes vista na postura tomada pelos ancestrais. Daí que examinando com grande segurança os conselhos de Vó Rosa e relatando as tarefas do cotidiano dos negros, provindos do Porto de Búzios, a autora mostra sua preocupação em denunciar maus tratos, arbitrariedades praticadas por autoridades,

torturas e proibições diversas constatadas na organização social brasileira: Certa vez, pelos idos de 1950, tendo acampado por estas paragens um grupo de tropeiros com mulheres e crianças, sentiu-se logo a força da lei, que para cá acorreu em grupos. Vinham com intimação para que a área fosse abandonada, sob a alegação de que ali se tinham tornado inconvenientes como amotinadores e perturbadores da ordem e sossego público.

Notável foi então a ação de Vó Rosa que, com o auxílio de Vô Aquilino, Vó Noêmia, Vó Otília e mais as famílias Santos e do Velho Marciano, frustrou toda a ação policial, barrando a milícia e clamando pela solidariedade dos demais, manifestando-se em cantos de liberdade.

Durante três dias uma fogueira ardeu e o jongo retumbou festivo em alerta pela madrugada.” (VIEIRA, Lia. “Rosa da Farinha.” In: Cadernos Negros volume 22.1999: 61)

Lia Vieira expressa uma forte herança cultural, firmada nos laços de descendência.

Seu texto revela afinidade e identificação provocadas pela maior proximidade com os transmissores diretos da cultura negro-africana, que se presta mais fundamentalmente aos propósitos de sua literatura: A gente ouvia, mas tudo não gravava, eles contavam também que de vez em quando tinham medo de que a escravatura voltasse. Infelizmente todo esse povo, que tinha essa história, acabou morrendo e ficaram assim as histórias que a gente lembra de criança como esses velhos contavam. (VIEIRA, Lia. “Rosa da Farinha.” In: Cadernos Negros volume 22.1999: 59)

Essa relação de “reapropriação do corpo e da memória fraturada” (FERREIRA. Elio.2008) surge também noutros textos em prosa da autora. Neles, mostra a vida e o cotidiano das mulheres negras. O que surge nos episódios expressa a marca de experiências deixadas pela violência sexual, tristeza, solidão e pelos ecos de antigos pesadelos, situados num novo contexto: Agarraram-me a cabeça. Taparam-me os olhos. Não durou muito o suspense. Pelo cheiro de manga e as mãos sujas de terra, só podia ser a maldita. Desvencilhei-me com raiva e vi a seus pés um saco cheio de mangas e a cara torta e desgrenhada de minha irmã, Aruanda.– Luanda – foi me dizendo – nem demorei muito, viu. Escureceu faz pouco e Flor de Liz nem chegou. Tem janta? Demorei mais porque de novo aquele velho encherido, seu safa-Onça, buliu comigo, dizendo gracinhas. Dei-lhe uma mangada na cabeça e acabei com a prosa dele. A molecada ficou num riso só. (VIEIRA, Lia. “Foram sete...” In: Cadernos Negros volume 14. 1991: 40)

“Foram Sete” é uma dessas narrativas contemporâneas de estruturas subjetivas bem amplas e extravagantes. Sua propriedade, precisamente, é a de delinear as aparentes ingenuidades das personagens. O conto apresenta uma denúncia de violência por assédio sexual. O relato feito pela escritora examina os desejos recalcados nos agressores e o constrangimento causado pela tentativa frustrada de um estupro. Assim, apontando os casos de atentado ao pudor da mulher negra, Lia Vieira coloca de modo faceiro uma advertência feita por aquelas que conhecem o ultraje e buscam proteção. Quando Flor de Liz resolvia conversar, partia sempre do mesmo ponto, de como começara a sua vida, de como seu patrão lhe fizera as prendas, de como se devia manter limpa, linda e jovem para sobreviver na cidade grande, principalmente no morro. (VIEIRA, Lia. “Foram sete...” In: Cadernos Negros volume 14. 1991: 40)

Indo ao encontro da subjetividade exposta no ato de fruição da vida, a escritora procura enunciar, de modo simples, uma singularidade que vai aparecendo aos poucos. Isso nos parece vital para a compreensão daquilo que está no jogo interno da narração. Para mim, ao localizar suas histórias no espaço da escrita, Lia Vieira parece sugerir com generosidade uma nova relação, muito mais importante, com aquilo que expressa os sentimentos: o transbordamento da beleza e dos delicados amores femininos. É um relato que vai agrupando cores, concentrando a vida e limpando o caminho.

Em várias dessas aventuras, a autora refere-se especificamente a visões surgidas em função das pretensões, das ações e das considerações que conduziram as mulheres na busca da celebração dos eventos que mostram a importância dos acontecimentos que concernem às suas maneiras e ideologias. Em “A Paixão e o Vento”, outro conto de Lia Vieira presente nos

Cadernos Negros, vemos o personagem Bira se negar a realizar o desejo de Ritinha, ele que havia mostrado a ela tantas coisas:

Bira foi tu que me deu força, aí deu uns requebros na frente dele, roçando a bunda nas calças dele, as mãos deslizaram pela pele lustrosa da cintura dela,fez mais devagar se apertando de encontro ao corpo dele, deu vontade de espremê-la, trazê-la para mais junto... Te vi menina, garota, pirralha... Eu sei que só num sou mais, sente só, deixou o pescoço dobrar em volta do ombro dele, olhou dentro dos olhos de Bira, quase um apelo, forçou o braço para estreitá-lo contra o corpo suado, fervente, saiu baixinho, parecia dizer sem querer... Me possui, Bira... Empurrou-a bruscamente para desvencilhar-se,toma tenência garota, tu ainda é uma fedelha, pô, aí ó, adepois tu fica cheia, o morro todo vai saber, e aí como é que que fica o papai aqui... Saiu se ajeitando enquanto ela, lépida, foi se esgueirando pelo labirinto dos barracos em busca de água para abrandar-lhe as chamas... (VIEIRA, Lia. “A Paixão e o Vento”. In: Cadernos Negros: três décadas, 218)

De forma bem original, Lia Vieira coloca em sua literatura a realidade vivida de modo cada vez mais forte nas histórias de amor. O leitor poderá, evidentemente, encontrar alguns pontos que chegam a comprometer a reputação e a moral dos amantes. Se inicialmente Bira havia se negado a realizar os desejos de Ritinha porque ela ainda era uma “fedelha”, no final do conto, já se revelando uma mulher bastante atraente, é a vez de Ritinha de rir do novo fato que surge: Sabe, num é por nada, mas achava que tu era uma criança, os olhos iam acompanhando, estreitando, enquanto Ritinha ia tirando as peças, um corpo desconhecido, embora já o tivesse visto e sentido diversas vezes, mas só que agora parecia diferente, real, tentação sedutora na brejeirice dos anos, viu-a nua, tesão, a ânsia de extravasar o gozo prometido... Bira puxou-a contra seu corpo, rolaram sobre o carpete macio, refez o quadro, a menininha tropeçando na quadra, o sorriso-criança, ela pediu baixinho, faz gostoso Bira, a paixão dele era tão grande que após tanto tempo se convertera em fogo, quis fazer... No dia em que finalmente se deram a conhecer, de suas entranhas brotou uma língua flamejante que reduziu o membro tão esperado a um montinho de cinzas.

***

Levantou-se da cama, foi à janela e, do parapeito, com o carinho, começou a soprá-las ao vento... Bira, você brochou... Ele vestiu a roupa em silêncio, falou para o moço da portaria, vê lá o que a menina quer, subiu seu morro, no caminho vendeu o tamborim... VIEIRA, Lia. “A Paixão e o Vento”. In: Cadernos Negros: três décadas, 218-219)

Portanto, o que vemos é uma inversão da representação tantas vezes destinada a expor a virilidade masculina. Bira, agora constrangido e sentindo-se inferior, vê-se destruído e desesperado. Sai do quarto em que estava com Ritinha e vende o objeto que tanto havia aproximado os dois. Sendo Assim, podemos dizer que é na união de dois motivos, a metáfora da sensualidade da mulher negra e a subversão da representação estereotipada em nossa literatura - a questão fundamental da matéria literária de Lia Vieira. Nessas letras está a possibilidade da existência de novas formas de ver a vida pessoal e o cotidiano público desse “estranho e obscuro objeto do desejo” que é a mulher.

Nesse sentido, o verdadeiro grande assunto presente no enredo das histórias contadas por Lia Vieira é o da reflexão sobre a condição da mulher negra: o quanto elas devem se proteger e se vigiar; o quanto são censuradas; suas bobagens, suas suficiências (e insuficiências) e, ainda dentro desse limite, as suas flutuações, suas provas de ignorância e suas complacências. Em suma, nesses escritos veremos a reflexão sobre o desenvolvimento e fortificação do espírito das mulheres negras.

Preferi os bailes de vitrola de ficha, freqüentando as pistas de dança com minas de minha idade. A marca dessa época veio quando, no segundo ano ginasial, escrevi, produzi e dirigi uma peça, Nega República, e fiquei, lógico,com o melhor papel. As outras meninas, insossas coadjuvantes, mesmo sem ter brilho no espetáculo, adoraram os aplausos, isso lhes bastava. Adorei a sensação de popularidade e poder. Foi meu último ano ali. Precisei complementar a renda da família, que passava por necessidade. Contas feitas, não há maçã sem acidez, não há vida sem mordidas, estava tudo bem assim.(VIEIRA, Lia. “Maria Déia.” In: Cadernos Negros volume 24, 68)

O conto acima expõe o jogo pessoal do eu/nós feminino. Nele surgem outros temas, como o contato com os orixás. Dentre esses temas está aquele que põe em discussão a questão das aparências, e também o de certos credos que são manietados para visualizar, num lugar sempre fixo, os negros. E para que possamos determinar, ainda melhor, o extraordinário estilo literário da autora em questão, apresentamos o seguinte exemplo:

O enterro parou a cidade. Coroas de flores foram enviadas por bicheiros,pastores, umbandistas, comerciantes, políticos, chefões de outros morros e de outros Estados: todas sem identificação. O cortejo se estendeu por quilômetros. Panos pretos nas janelas em sinal de luto. Netos, filhos, afilhados que chegavam perto de cem; tanta gente para dar o último adeus ao benfeitor, rostos exauridos de sofrimento e admiração. O céu encoberto onde se via uma profusão de fogos de artifício. Isolaram aquela morte. Lançaram-lhe um monte de abafo. Enterro anônimo coberto por um só programa de televisão. (VIEIRA, Lia. “Maria Déia.” In: Cadernos Negros 24, 79)

Aí está definido de maneira distinta o traço de Lia Vieira. Neste conto, em que são narradas histórias de assassinatos, as versões dos sujeitos e dos investigadores dos crimes, vê-se aparecer as razões pelas quais pretendemos explicar ou justificar a conversão do símbolo negativo, inoculado na gênese do povo negro, por outro modelo que busca atribuir positividade ao conjunto de traços entendidos como afrodescendentes.

E é contundente o desconforto gerado na crítica promovida pelos textos.

A conclusão que se nos mostra definitiva é a de que a literatura sempre foi construída como um sistema geral de signos e que as significações desse sistema não são estáveis. Elas evoluem, marcando o fim de uma época, e passam a ser escritas noutros termos. Certamente, Lia Vieira se destaca na lista de autores empenhados em transformar, num sinal de revolução, as formas e conteúdos estáveis que durante tanto tempo estiveram acoplados à consciência feminista e a comunidade literária, agregando novas perspectivas aos recortes de memória e projetando diferenças para os acontecimentos futuros.

Referencias Bibliográficas:

ALVES, Miriam Aparecida e DURHAM, Carolyn Richardson.

Enfim...Nós / Finaly...Us. Colrado Spring., 1995.

FERREIRA. Elio. “A ‘Carta da Escrava Esperança Garcia do Piauí’, Escrita por ela mesma, e sua relação com a poesia das mulheres dos Cadernos Negros.” In: BARBOSA, Márcio e RIBEIRO, Esmeralda (Orgs.)

Cadernos Negros: três décadas: ensaios, poemas, contos. São Paulo: Quilombhoje:

Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2008. VIEIRA, Lia. “Rosa da Farinha.” In:Cadernos Negros,Vol. 22: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje. 1999.

______, Lia. “Maria Déia.” In : Cadernos Negros Vol. 24, contos afro-brasileiros. São Paulo: Edição dos Autores. Quilombhoje, 2001.

______, Lia. “A Paixão e o Vento”. In: Cadernos Negros: três décadas: ensaios,

poemas, contos, cit.

______, Lia. “Foram sete...” In: Cadernos Negros Vol. 14, contos. São Paulo:

Quilombhoje. 1991.

  • Thiago Antônio dos Santos é graduando em Letras pela UFMG.

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